Lei da Demanda, Equação de Slutsky e Efeito-Preço Puro de Becker

Zinho
16 min readMay 1, 2022

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Notoriamente é comum ouvir dos que (acham) que entendem de economia falar sobre “oferta e demanda” [se quiser saber mais sobre, recomendo esse link] ou ainda mais sobre a “lei da (oferta e) demanda” [se quiser saber mais sobre, recomendo esse link], mas o que seria esta lei? Quando dizemos que um aumento do preço implica numa diminuição do consumo, seriam isso as consequências desta suposta lei? Seria isso tudo que tem de-se dizer sobre o assunto?

Primeiramente temos que ter cuidado para não raciocinar a partir de uma mudança de preços, isto é, afirmar algo com base nas consequências da variação de uma variável de interesse sem olhar para a causa desta variação. No presente caso, uma mudança de preços pode tanto aumentar o consumo quanto diminuí-lo! Vamos a título de aproximação assumir que as curvas tanto de oferta e quanto de demanda são bem comportadas [preferências racionais, fortemente monótonas, estritamente convexas, homotéticas e contínuas — para saber mais olhar o apêndice matemático], então não é necessário invocar preferências estranhas ou elasticidades. Seria isso uma refutação à lei da demanda? Não!

O caso não é uma refutação, uma vez que não devemos olhar a mudança do preço em si, mas a causa desta mudança! Por exemplo, um aumento do preço consequente de uma expansão da demanda acarreta num aumento da quantidade demandada (i.e, se consome mais), enquanto um aumento do preço consequente de uma retração da oferta acarreta numa queda da quantidade demandada (i.e, se consome menos). Sendo justamente esse caso que estamos considerando para valer a lei da demanda, portanto, em outros termos, dado uma demanda fixa com um aumento do preço há uma diminuição na quantidade demandada, ceteris paribus.

Lei da Demanda: Tudo ou mais constante, um aumento do preço do bem x implica uma diminuição na quantidade demandada do bem x, ou seja, consome-se menos do bem x.

Okay, mas o que está por trás dessa lei da demanda? Essencialmente uma mudança de consumo decorrente de uma mudança de preços, certo? Mas há dois efeitos que valem de nota ao entender mudanças nos preços e na quantidade consumida do bem, que são o efeito substituição (E.S) e o efeito renda (E.R). Efeitos esses que podem ser derivados matematicamente pela equação de Slutsky.

O efeito substituição é a taxa que mede a variação do consumo quando há uma mudança de preço, já efeito renda é a taxa que mede a variação do poder de compra do consumidor quando há uma mudança de preços. Vale a nota que para os dois efeitos se considera uma cláusula ceteris paribus. Enquanto, a equação de Slutsky calcula o efeito-preço (composto) que é igual a soma do efeito substituição e efeito renda.

Relembrar é viver: De onde vem a curva de demanda? Para uma exposição mais minuciosa, pode ser encontrada neste link.

A demanda é uma função que é derivada do problema do consumidor. Mas o que é esse problema?

Problema do Consumidor:

O problema do consumidor é encontrar a cesta de bens que maximiza sua função de utilidade sujeito à restrição. Sendo a função utilidade apenas uma representação numérica das relações de preferência dos indivíduos. Tal problema pode ser representado genericamente da seguinte maneira:

Ao resolver esse sistema chegamos nas demandas marshallianas:

Recebem este nome em homenagem ao economista mais famoso a derivá-las graficamente, que formulou a lei da demanda como entendemos hoje, que foi Alfred Marshall (1890,1892).

Para saber como derivar esse resultado, basta olhar o apêndice matemático.

Isto é, as demandas ótimas [o apóstrofe denota que está no ótimo] são uma função do preço e da renda. Daí que deriva-se a intuição por trás da equação de Slutsky, suponha que houve um aumento do bem 1, decorrente disso temos uma mudança na quantidade demandada. Mas com a mudança no preço também há uma mudança na renda e decorrente da mudança na renda há uma mudança na quantidade demandada. Por isso, uma mudança no preço gera dois efeitos: o efeito renda (mudança no consumo em função da variação da renda) e o efeito substituição (mudança no consumo em função da variação do preço), sendo a mudança observada um efeito composto desses dois.

A título de curiosidade a equação de Slustky foi desenvolvida pelo economista ucraniano-russo Eugenio Slutsky (1915). De qualquer forma, para chegar na equação é preciso entender sobre a demanda compensada ou demanda hicksiana, que seria justamente a demanda marshalliana quando eliminamos o efeito renda, focando apenas no efeito substituição. Como chegar nesta?

Vale lembrar que para chegar na curva de demanda resolvemos o problema do consumidor, cuja lógica é simples: temos uma restrição orçamentária que justamente restringe as nossas possibilidades de consumo. Dado nossas preferências e portanto função utilidade, queremos escolher a cesta de bens que provêm a maior utilidade. Graficamente é o mesmo que escolher o nível da curva que tangencia a restrição.

Como dito em outro texto: A demanda nada mais é a disposição a pagar do indivíduo. Ou seja, em termos do que colocamos até agora, a demanda é como a decisão ótima de consumo de um bem muda quando se tem alterações nos preços relativos. Derivando graficamente a curva de demanda temos:

Mas para todo problema de maximização podemos também pensá-lo como um problema de minimização, onde a função objetiva do primal (problema de maximização) é a restrição do dual (problema de minimização) e a restrição do primal é a função objetivo do dual. Ou seja, ficamos com o seguinte, tomando novamente as mesmas utilidades do primal:

Analogamente podemos representar esse problema da seguinte maneira:

Ou seja, o dual do problema do consumidor é justamente fixar um nível de utilidade e dado esse busca-se minimizar a reta orçamentária até que se tangencia a utilidade. Minimizar o dispêndio para achar as quantidades ótimas que estejam na utilidade.

Para saber como chegar nesse resultado olhar o apêndice matemático.

Sendo assim, no dual, as quantidades ótimas encontradas são as demandas hicksianas:

Recebem este nome em homenagem ao trabalho do economista John Hicks (1939).

Perceba que essa demanda não é mais uma função da renda. A intuição é que estamos compensando a perda de renda para que o indivíduo escolha a quantidade demandada do bem preservando o seu nível de utilidade original. Sendo assim, qualquer efeito da mudança de consumo do bem é fruto única e exclusivamente da variação dos preços e não da renda. Eliminamos o efeito renda e mantivemos apenas o efeito substituição, ou seja, a variação na quantidade consumida do bem x é quanto ele substitui sua taxa de x pela taxa de y.

Graficamente a derivação da curva de demanda hicksiana é a seguinte:

Tendo as demandas marshallianas e a compensada, para chegar na famosa equação de Slutsky é preciso saber de mais alguns termos e equações. Comecemos com a função dispêndio, que seria o seguinte:

Substituindo as variáveis independentes pelas suas quantidades ótimas, temos que:

Essa é a função dispêndio minimizada.

No ótimo, a quantidade demandada ótima pela demanda marshalliana é a mesma que pela demanda hicksiana, por isso o primal e o dual chegam (e tem de chegar) no mesmo resultado.

Então no ótimo temos que:

Assim, como as quantidade demandadas tem de ser igual, ou seja

Temos que:

Agora podemos chegar na equação que queríamos.

Equação de Slutsky

Faremos a derivação completa aqui e não no apêndice, portanto peço aos leitores um pouco de calma. Sabemos que no ótimo temos as seguintes equações:

chamemos essa equação de (1)
chamemos essa equação de (2)

Assim como sabemos que:

Então a partir disso, uma variação de preço implica:

Por (1) e (2), podemos reescrever essa equação acima por:

Sua versão no equilíbrio nada mais é que:

Chegamos na Equação de Slutsky, mas qual sua utilidade? Ela nos ajuda a decompor o efeito-preço, isto é, como a mudança de preço afeta a quantidade demandada em dois efeitos (renda e substituição). A partir destes podemos avaliar o comportamento de consumo do agente frente a esse bem, sendo que a depender de qual dos efeitos domina sabemos dizer se o bem é normal, inferior ou de Giffen. Mas o que é isso?

Bem Normal:

Um bem dito normal é simplesmente um bem cujo consumo deste aumenta quando a renda do indivíduo também aumenta. Por isso que é normal, uma vez que a maioria dos bens que consumimos são deste tipo, por exemplo camisas. Para garantir essa propriedade é preciso que tanto o efeito renda quanto o efeito substituição seja menor que zero.

Graficamente temos o seguinte cenário:

A lógica da imagem é a seguinte: O indivíduo estava consumindo a cesta A sob a reta da restrição orçamentária vermelha, porém com a mudança do preço do bem x ele se desloca para curva azul, na qual sob essa nova restrição ele escolhe a cesta B. O efeito preço (composto) é justamente esse deslocamento do consumo de A para B. Para ver o indivíduo quanto substituiu o consumo do bem x pelo consumo do bem y, portanto calcular o efeito substituição, deve-se, dado os novos preços relativos, deslocar a nova reta de restrição orçamentária para utilidade original. Assim, avaliamos que sobre a mesma utilidade o quanto consumiria de x com os novos preços. Enquanto isso, o resto da variação no consumo do bem x de C para B é justamente dado a diminuição na renda, portanto consequência do efeito renda.

Bem Inferior:

Um bem dito inferior é um bem cujo consumo deste diminui quando a renda do indivíduo aumenta. Por isso que é inferior, pois quando se tem uma renda maior passa a consumir bens normais. Um exemplo deste tipo de bem é andar de transporte público, uma vez que se tem mais renda passa-se a andar de carro ou de Uber. Para garantir essa propriedade é preciso que o efeito renda seja maior que zero, enquanto o efeito substituição seja menor que zero.

Graficamente temos o seguinte cenário:

Então a diferença entre bem normal e bem inferior pode ser conferida na seguinte imagem:

Perceba que a direção da variação do consumo do bem em função do aumento da renda para o bem normal é a oposta a do bem inferior. Enquanto, a variação do primeiro é positiva (Δx > 0) e do segundo vai se tornar negativa (Δx < 0).

Bem de Giffen:

Um bem de Giffen é uma anomalia, uma possibilidade meramente teórica que até onde se sabe não existe na realidade. Este bem seria um no qual (ceteris paribus) o aumento do preço leva a um aumento da quantidade demandada. Há quem diga que isto seria uma refutação à lei da demanda, embora seja um resultado derivável dos mesmo pressupostos que se chega na demanda. Mesmo assim, geralmente os supostos bens de Giffens, por exemplo batatas na Irlanda no século XIX (Dwyer & Lindsay, 1984), são consequência do analista não perceber que a quantidade demandada é uma taxa, ou seja, desconsidera o tempo quando se trata de demanda. De qualquer forma, para se obter este resultado é preciso que o bem seja inferior e que o módulo do efeito renda seja maior que o módulo do efeito substituição.

Graficamente temos o seguinte cenário:

Para entender mais sobre bens de Giffen, recomendamos o seguinte texto do professor Peñaloza.

Efeito-Preço Puro de Becker

Uma questão importante introduzida na literatura por Gary Becker (1962) é o efeito-preço puro. Segundo Becker, na decomposição feita por Slutsky computa-se o efeito composto na quantidade demandada via preços, mantendo os outros constantes, e via renda. Todavia, para o efeito relevante é preciso considerar a renda real, ou seja é preciso efetivar uma correção na renda nominal de modo que traga de volta ao agente o poder de compra da cesta original. Então qual é a lógica?

Imagine as seguintes cestas:

Dada a mudança de preços queremos achar a (nova) linha de restrição orçamentária que passa pela cesta original, uma vez que tem que ser factível e com a nova inclinação:

Logo, temos que

Assim,

Manipulando os termos chegamos a essa expressão:

Mas quanto é β?

Ou seja, β nada mais é que o índice de preços de Laspeyres. Portanto, feito a correção chegamos na seguinte solução gráfica:

Sendo assim, concluímos que:

Assim, com essa correção garantimos que o efeito preço está sobre condição ceteris paribus. Para entender melhor sobre esse efeito, recomendo este vídeo do professor Peñaloza.

Com isso terminamos nossa exposição da lei da demanda, equação de Slutsky e do efeito-preço puro de Becker. Espero que tenha gostado e aprendido. Até a próxima!

Apêndice Matemático

Curvas de demanda bem comportadas:

Dado o espaço de consumo X, que representa o conjunto de todas as possíveis (mutuamente excludentes) alternativas que um indivíduo enfrenta ao tomar uma decisão.

x ≽ y : denota que x é ao menos tão desejado quanto y, ou seja, a pessoa prefere x a y ou é indiferente entre x e y. Chamaremos essa relação de preferência fraca.

Dessa relação derivamos outras duas propriedades:

x ∼ y se ambos x ≽ y e y ≽ x. Esse símbolo denota que x é indiferente a y.

x ≻ y se x ≽ y mas não y ≽ x. Esse símbolo denota preferência estrita de x a y.

Definição: Uma relação de preferência ≽ em X é racional se as preferências foram completas e transitivas.

  1. Preferências são completas se para todo x, y ∈ X, x ≽ y ou y ≽ x (ou ambos)
  2. Preferências são transitivas se para todo x,y e z ∈ X, se x ≽ y e y ≽ z então x ≽ z.

Para entender melhor a intuição econômica por trás da transitividade, recomenda esse vídeo.

Definição: Uma relação de preferência ≽ em X é monótona se x ∈ X e y >> x implica que y ≻ x. É fortemente monótona se y ≥ x e y =/= x implica que y ≻ x.

Definição: Uma relação de preferência ≽ em X é localmente não saciável se para todo x ∈ X e todo ε > 0, há um y ∈ X tal que ||y — x|| ≤ ε.

É possível demonstrar que se uma relação de preferência é fortemente monótona então ela é localmente não saciável.

Dado uma relação de preferência e a cesta de consumo x, o conjunto contorno superior de uma cesta x é o conjunto de cestas que são ao menos tão boas quanto x: {y ∈ X: y ≽ x}. O conjunto contorno inferior de x é o conjunto de todas as cestas que x é ao menos tão bom quanto y: {y ∈ X: x ≽ y}. Enquanto, o conjunto de indiferença contendo o ponto x é o conjunto de todas as cestas que são indiferentes a x, ou seja, {y ∈ X: y ~ x}.

Definição: Uma relação de preferência ≽ em X é convexa se para todo x ∈ X. o conjunto do contorno superior {y ∈ X: y ≽ x} é convexo; isto é, se y ≽ x e z ≽ x, então a*y + (1-a)*z ≽ x para qualquer a ∈ (0,1)

Definição: Uma relação de preferência ≽ em X é estritamente convexa se para todo x ∈ X, nós temos que y ≽ x e z ≽ x e y =/= z implica a*y + (1-a)*z ≽ x para qualquer a ∈ (0,1)

Definição: Uma relação de preferência ≽ em X é homotética se todos os conjuntos de indiferença estão relacionados por expansão proporcional ao longo dos raios, isto é, se x ~ y então a*x ~ a*y para qualquer a ≥ 0

Definição: Uma relação de preferência ≽ em X é contínua se é preservada entre seus limites. Isto é para qualquer sequência de pares

temos que x ≽ y.

A partir de relações preferências (≽ em X) racionais, fortemente monótonas, estritamente convexas, homotéticas e contínuas pode-se demonstrar que implica em curvas de demanda bem comportadas. Derivar este resultado vai além dos propósitos do presente texto, mas para saber mais dessa recomenda-se Mas-Colell et al. (1995) e Kreps (2018).

Derivando a demanda marshalliana:

Vamos resolver o problema do consumidor com uma utilidade com a forma funcional de uma Cobb-Douglas. Ou seja,

Utilidade:

Restrição Orçamentária:

Portanto, dado essas variáveis o problema do consumidor montado fica assim:

Ademais, sem perda de generalidade, supomos que:

Montando o Lagrangeano temos:

Sendo assim, chegamos nas seguintes Condições de Primeira Ordem (C.P.O.s):

Isolando o lambida em (1) e (2) temos respectivamente:

Igualando (1’) com (2’):

Ou seja, podemos derivar a seguinte expressão

Substituindo (*’) em (3), temos

O que acarreta nas seguintes demandas (marshallianas)

Derivando a demanda hicksiana:

Tomando uma Cobb-Douglas de 2 bens, montando o Lagrangeano temos:

Sendo assim, chegamos nas seguintes Condições de Primeira Ordem (C.P.Os):

Igualando os lambidas temos que:

Por conveniência chamemos a seguinte expressão por gamma:

Portanto, da penúltima expressão podemos isolar os bens de tal modo que chegamos nessas expressões:

Substituindo (2) em (1), temos

Portanto, por meio de algumas manipulações algébricas triviais, temos que:

Analogamente, substituindo (3) em (1) e isolando y temos

Fim.

Referência:

Marshall, Alfred. The Principles of Economics. McMaster University Archive for the History of Economic Thought, 1890.

Marshall, Alfred. Elements of economics of industry: being the first volume of Elements of Economics. Vol. 1. Macmillan and Company, 1892.

Slutsky, Eugenio. “Sulla teoria del bilancio del consumatore.” Giornale degli economisti e rivista di statistica (1915): 1–26.

Hicks, John R. Value and Capital: An Inquiry into Some Fundamental Principles of Economic Theory. Oxford: Clarendon Press, 1939, 2nd ed. 1946

Becker, Gary S. “Irrational behavior and economic theory.” Journal of political economy 70.1 (1962): 1–13.

Dwyer, Gerald P., and Cotton M. Lindsay. “Robert Giffen and the Irish potato.” The American Economic Review 74.1 (1984): 188–192.

Mas-Colell, Andreu, Michael Dennis Whinston, and Jerry R. Green. Microeconomic theory. Vol. 1. New York: Oxford university press, 1995.

Kreps, David. Notes on the Theory of Choice. Routledge, 2018.

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Written by Zinho

Mestrando em Estatística pela IMECC - Unicamp, bacharel em ciências econômicas FEA-USP. Sonho em ser acadêmico/professor.

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